18/11/2021

O Feitiço do Tempo

 

Acordou com a sensação de que aquele dia já foi vivido uma vez. Não lembrava quando. Porém, foi só abrir os olhos e percebeu que havia algo de estranho. Era um replay.
Os pássaros lá fora cantavam tal e qual outro dia. Emendavam um canto noutro numa algazarra sem fim. O sol jogava um brilho conhecido que passava com facilidade pela janela como outro dia.
Ocorreu que, talvez, estivesse num filme. Lembrou de O Feitiço do Tempo, um clássico dos anos 90. No filme, o ator Bill Murray vive um repórter de televisão que faz previsões de meteorologia e, por obrigação e totalmente contra a vontade, vai a uma pequena cidade interiorana dos EUA para fazer uma matéria especial sobre o celebrado "Dia da marmota". Contrariado, pretendia ir embora o mais rapidamente possível, mas, para seu desespero, inexplicavelmente fica preso no tempo, condenado a vivenciar para sempre os eventos daquele dia.
Fez um café do mesmo jeito que fazia sempre. Serviu na mesma xícara de sempre. o açúcar estava no fim. "Estava na unha" como diria sua mãe, que há tempos havia partido. O pão era de ontem.
Abriu um site e lá estava: anúncio de novo aumento dos preços dos combustíveis. Governo reduz investimentos na educação. Presidente faz gracejos com coisa séria. Artista é perseguido porque critica o governo.
Bobagem, pensou. Não era repórter nem nada. Vivia no Brasil, terra do samba, da alegria e de dar um jeito sempre que necessário for. Não tinha mais dúvidas. Já havia visto tudo aquilo. Era uma reprise. Parecia que tinha retomado o último capítulo de uma daquelas séries que demoram a entregar a nova temporada e exige que os últimos atos sejam revistos sob pena de não compreender o novo enredo.
O gosto era de repetição. Não havia nada de novo. Coisas conhecidas atrás de coisas conhecidas. Até o vizinho ligava o som na mesma música.
O caminhão do lixo passou. Os garis corriam no meio ritmo. Os cães reagiam como se tudo o que foi descartado ainda tivesse dono. Como se o resto fosse precioso demais para ser levado e jogado no caminhão.
O WhatsApp estava fora do ar. Estático. Paradão. Sonolento. Estranhou que, ao ligar o celular, o aplicativo não tivesse disparado como sempre ocorria. Os grupos estavam silenciosos como nunca. Nem preces, nem gratidão, nem uma nova defesa das ações governamentais, nem os enroscos familiares. Restava o silêncio. Parecia outro dia. Um outro dia qualquer desses que não deixam saudades.
Esperava por um sinal que esclarecesse se estava no sonho já sonhado ou se a coincidência era tamanha que tudo tinha gosto de algo manjado.
Talvez não fosse necessário chegar à meia-noite para ver o que o calendário diria. Talvez antes disso algo novo, alguma coisa inédita fosse vista, dita ou sentida. Por enquanto, restava o gosto de um feitiço do tempo.

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