19/10/2017

A Mala

Fazia algum tempo que não conversava com a velha amiga. Não: ela não é velha. Antiga é nossa amizade que já registra algumas décadas. Durante este afastamento muita coisa ocorreu. Os dias são outros. Nós também somos outros. Nos tempos distantes não havia assim tanta tecnologia. Os contatos eram mais físicos, olho no olho.  Vivia-se sem celulares, sem redes sociais, sem tanto compartilhamento nem tanta postagem. A vida, talvez por isso, transcorria sem tanta pressa. As notícias, mesmo numa cidade pequena, iam deslizando preguiçosamente de boca em boca, espraiando-se nas conversas das comadres nos seus chás tardios ou no traguinho dos compadres num balcão ensebado de algum desses botecos que vendiam pão, leite em saquinho, Mumu, Bombril, farinha, açúcar, panelas, fumo em rolo, linguiça, além de algum remédio para dor de cabeça.
Disse-me que dia desses viu um impactante vídeo numa das redes sociais. A mensagem dizia que nascemos com o propósito de carregar nossa mala. E vamos atulhando a mala com os conhecimentos que vamos adquirindo ao longo da existência. Nem só aqueles conhecimentos transmitidos por fontes seguras e comprometidas com o processo de crescimento dos indivíduos. Não! A mala vai recebendo lentamente todo o tipo de material ali jogado, sem censura prévia, sem grandes deliberações nem juízo crítico.
Assim, passando gerações e mais gerações, alguns conhecimentos vão ficando para trás, pois foram severamente confrontados pela lógica e revogados expressamente pelos novos conhecimentos. Porém, o apego vai fazendo com que os indivíduos os mantenham na mala. Com isso, vai se perdendo espaço para recheá-la com coisas novas e construtivas.
Dizia-se no passado, a bem da verdade talvez ainda se diga em alguns recantos deste rincão, que não se deve comer melancia num dia em que houve a ingestão de leite. Segundo consta, o contato das duas fontes alimentícias poderia causar alguma estranha reação no organismo, que alguns mais sábios chamam de revertério no bucho, cujos resultados variam de dores de cabeça, complicações estomacais até a  morte do desatento comilão.
Por falar em morte, dizia-se que manter dois chinelos virados com a palmilha para cima causaria a perda da genitora. Talvez um filho desalmado tenha feito essa tentativa algum dia, mas, ao que consta, num houve algum caso nos registros públicos onde um legista tenha cravado um atestado de óbito constando  como  causa mortis “Havaianas viradas”.
Claro, não há porque se levar tão a sério crendices populares que se caracterizam pela total falta de comprovação científica  e mesmo de bom senso. Não é menos claro, no entanto, que muito do que as pessoas pensam e fazem no seu dia a dia está relacionado com conhecimentos transmitidos por fontes não fidedignas. E assim vão ocupando sua mala muito mais como que os outros pensam, com o que os outros vão achar do que com o que se pensou, com o  que se analisou com profundidade ou com o que se quis.
E malas atulhadas pesam.
Vez por outra é necessário revirar as malas. Olhar ítem por ítem cuidando os prazos de validade, a necessidade e a qualidade. Torná-la mais leve é o propósito. Assim, ficará mais fácil levá-la de um lado para o outro, evitando-se dores no corpo e na alma.  

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