10/05/2018

Casa no Campo


Tinha saído do cemitério faz pouco. Um sol muito forte mostrava-se sobre a cidade. Era um desses verões fora de época. As pessoas saíam de casa pela manhã ainda encasacados e, ao meio-dia, se tanto, começavam a se despir. 
Era experiente o morto. Mas, pela idade que tinha alcançado, ainda poderia ficar por aqui mais alguns anos. Tinha casa, família, carreira, uma aposentadoria razoável e tudo o mais. Gostava de cantar. Na infância tinha jogado bola pelas ruas irregulares da sua cidade. Talvez até tivesse quebrado alguma vidraça num desses chutes que saem do controle e depois viriam dor de cabeça diante de um vizinho zangado ou de uma mãe preocupada com  a disciplina do filho.
Faz pouco, ainda no trabalho, divertia-se conversando sobre amenidades. Contava, vez por outra, pedaços de sua vida. Cenas rápidas de vitórias e das inevitáveis derrotas. De um amigo que ajudou em algum momento, de gente que apareceu e desapareceu deixando saudades, lições ou nem tanto, de chefes que marcaram ou que incomodaram.
Uma enfermidade, no entanto, abreviou sua existência. Vinha sofrendo fazia um tempo. Estava na fila. Esperava que alguém morresse. Um órgão são e compatível era tudo o que precisava. O tempo foi se esgotando. A marcha agonizante do tempo carregava ansiedade, esperança e tristeza num só pacote. Não deu tempo. O corpo entrou em colapso. A saúde se foi.  Um milagre, talvez, pediram os amigos e familiares.  Apesar das preces e das boas intenções, milagre não veio.
Os atos fúnebres fazia pouco haviam terminado. Os colegas, ainda com areia do cemitério nos calçados e um ar de afastamento nos olhos, retomavam seus postos de trabalho. Silêncio profundo. Da cozinha vinha um cheiro do cafezinho recém-feito.  Alguém ousou ligar uma música no computador.  Elis, timidamente, vencia o indiferente silêncio que se fazia na repartição. “Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa ficar no tamanho da paz/E tenha somente a certeza/Dos limites do corpo e nada mais”.
Ninguém falou. Nem aprovação nem reprovação. Só Elis transitava por ali. Sutil, misturando-se ao silêncio. Para quebrar o incômodo, pensei em duas ou três frases que se encaixassem no momento. “Tu vê como a coisa é cruel... O colega morreu. Morreu. E a gente continua fazendo as mesmas coisas. Como se nada tivesse ocorrido”, joguei no ar sem destino certo. Uma colega pediu paciência. “Não adianta ficar pensando nessas coisas. Melhor abaixar a cabeça e trabalhar”, disse, juntando uns papéis que estavam em cima da mesa e jogando um carimbo que nem precisava ser colocado naquela hora. 
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim/Eu quero o silêncio das línguas cansadas/Eu quero a esperança de óculos/E um filho de cuca legal...”, ouvi enquanto saia pela porta em direção à rua. O sol ainda estava forte. Mas, um ventinho já aparecia mostrando que o final da tarde seria frio.
Na rua, tudo estava igual como antes. A vida seguia. O camelô vendia camisetas falsificadas de time de futebol e uma velha senhora perguntava onde fica a rodoviária. Uma viatura da polícia passou em alta velocidade. Uma menina entediada atendia o celular: “Já disse que não sei, mãe. Não me pergunta mais isso!”.  O dia seguia igual. Igual como antes.


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