17/05/2012

O homem de bem

Não é nenhuma novidade que os tempos são outros. Nas duas décadas que se passaram a Terra cresceu em informação. O mundo todo em só clique. Liberdade de informação a todos, indistintamente. “Dê-me um mouse e eu desbravarei o mundo”, diria hoje com razão o matemático Arquimedes. Imaginava-se que, diante desta tal liberdade, os costumes mais arraigados e menos construtivos sofreriam um grande baque.
Que nada! Não obstante o acesso e o amplo domínio da linguagem das mídias pós-modernas pela meninada resiste ainda entre estes mesmos jovens o ranço do preconceito. Não há coisa mais antiquada do que discriminar o outro. Cenas execráveis as protagonizadas pelos meninos e meninas que de celulares em punho acompanham a selvageria cometida por grupos contra colegas. Vez por outra os lamentáveis espetáculos produzidos nos corredores de escolas ou na saída das aulas tornam-se virais nas redes sociais. O que se vê? Jovens de tenra idade saciando sua sede. A violência estudantil, que não é coisa de hoje, é a reprodução do mundo intolerante que vivemos.

09/05/2012

Paciência de mãe

Minha mãe tinha muita paciência. O dia já havia se despedido a horas. No céu a lua mostrava-se brilhante. A bola, murcha, disforme, velha, ainda assim era perseguida pelo que restou da turma. Quatro ou cinco já haviam abandonado a peleia. Obedientes, sucumbiram aos primeiros chamados de suas mães.
Eu não. Era teimoso. Fome de bola. Não que fosse um filho desobediente. Era, isso sim, um moleque acometido de raro caso de surdez que durava enquanto a bola rolava pelo campinho ralo, cheio de tocos, irregular. Ali era o Maracanã. Na verdade, era uma tira de terra, espremida entre as casas e uma malha de eucaliptos. A goleira era de um passo, com as velhas havainas fazendo papel de poste.
As contendas diárias após a aula seguiam até a luz do dia esmaecer. Tentávamos acertar o que parecia ser uma bola de futebol. Minha mãe, vez que outra, apontava na janela gritando meu nome. Às vezes, entre um chamado e outro, uma verdadeira batalha se estabelecia. Tinha pressa de fazer mais um gol, mais pressa ainda tinha de deter os ferozes atacantes que se lançavam como um bando de guerreiros contra o meu território. Queriam a vitória a todo custo. Sentia-me ungido quando evitava o desastre. Acabado quando não reunia forças para impedi-los. Neste contexto, sempre parecia que um segundo a mais seria decisivo para definir aquela guerra. Era caso de vida e morte. Minha mãe entendia e tinha paciência, muita paciência.
Em casa, após as lutas homéricas no Maracanã, reunia o que sobrava de forças para um rápido banho e para um café com bolo frito. O corpo, ainda cansado, adormecia sem piedade. Acordar somente após três, quatro chamados. Muitas vezes somente após ser providencialmente sacudido pela minha mãe. Ocorre que as batalhas do campo do dia seguinte tinham sequência na noite. Nos sonhos defendia e atacava os territórios inimigos. Fazia gols e salvava milagrosamente o time. Vivia com fome. Com fome de bola. Minha mãe entendia. Ela tinha muita paciência.

08/05/2012

Uma boa conversa

O ano é de eleições. Prefeituras e Câmaras tendem a ganhar novas caras. O momento é de lançar as figurinhas. Até as convenções não há candidaturas postas. Somente postulantes. Agora, neste período que antecede a campanha propriamente dita, é a hora dos arranjos, dos acertos, da formulação de propostas para fechar os acordos partidários.
O bolo ainda não está pronto. Nem no forno está. Sobre a mesa ainda estão os ingredientes: farinha, fermento, ovo, açúcar, uma pitada de sal, leite ou suco. Alguns utensílios já estão postos, aguardando o início do processo. O bolo está ainda por ser feito. Mas o seu projeto já está sendo servido. Suas fatias virtuais, com certeza, já estão sendo milimetricamente cortadas nos encontros das cúpulas partidárias. Cada grupelho leva tantas fatias conforme sua pretensa densidade eleitoral ou conforme sua fome de poder. Máquina de calcular é indispensável sobre a mesa das negociações. Ah, e levantamentos eleitorais dos pleitos que se passaram.

25/04/2012

Tudo passa

As meninas se abraçam, cantam, riem e pulam. A alegre canção de forma mágica as une e as afasta do mundo real. A hora do recreio é a hora da fantasia. Habitam um mundo próprio, onde o riso franco cria uma carapaça que impede a entrada das preocupações cotidianas. Assim seguirão um tempo. Os meninos, de outra banda, medem força daqui e dali. Juntam-se em clubinhos particulares. Correm pra lá e pra cá. Gastam suas energias enquanto não são despertados pelo soar do indefectível sinal emitido pela campainha.
  Chega uma hora, porém, em que os recreios tornam-se menos mágicos. O tempo passa. Para trás vão ficando as ingênuas brincadeiras. As preocupações já são outras. As meninas deixam de cantar. Os meninos param de correr. São outros os seres que andam pelos corredores e pelo pátio da escola.
Tudo passa. Muda o tempo, muda o espaço, mudam os seres. As meninas e os meninos colhidos pela passagem do tempo não se verão mais brincando infantilmente. Alguns deles, anos mais tarde, até esquecerão que viveram dias de infantil alegria. Os que conseguem manter em suas mentes as memórias dos tempos da ingenuidade, no entanto, saboreiam um gostinho de magia.

21/04/2012

O contador de histórias

Arte sobre foto

Faz uns três anos que posto minhas crônicas neste blog, após  a publicação no Jornal Bons Ventos. Já escrevi sobre quase tudo. Já abordei a felicidade, a dor e o sofrimento, o abandono, as paixões futebolísticas, a velhice, a morte e a vida, a beleza, o tempo, o frio. Puxei do fundo da minha fraca memória os anseios que tive enquanto criança, as dúvidas e as descobertas de um adolescente tranquilo que passeava sem pressa e sem medo pelas ruas duma cidade provinciana. Aqui discorri sobre as tramas familiares, as incertezas do mercado, as jogadas da mídia, os meandros da política. Nem sei ao certo se ficou alguma panela que não tenha metido minha colher.  Até o Papai Noel foi malhado por aqui. Aliás, uma das crônicas mais lidas no meu blog é justamente uma que fala sobre a origem deste personagem e a sua ligação com a gigante Coca-Cola. 
Uma das experiências mais intrigantes ocorreu há algum tempo. Enquanto percorria os corredores do supermercado, fui abordado por um perspicaz repositor que perguntou à queima roupa: por que você escreve no jornal? Confesso que fiquei surpreso como quem leva uma rasteira, embasbacado com a apressada indagação que nem lembro a resposta dada. Talvez tenha dito “sei lá, sou amigo do dono!” ou “talvez acreditem que escrevo coisas interessantes” ou, ainda, “quem sabe tenha sido convidado por falta de outra opção melhor!”.

05/04/2012

O medo da morte

O ex-presidente Lula, que passou recentemente por problemas de saúde, tem medo da morte. Disse há alguns dias que se ela estiver em algum lugar na China, ele estará anonimamente em algum lugar da Bolívia. Buscará esconderijos insuspeitos para privar seu corpo da finitude indesejável. Ou seja, deseja guardar bom distanciamento do evento inevitável que colocará fim à sua existência.
Ele não está só. A morte sempre representou para os homens o fim de tudo, o ocaso dos sonhos e das alegrias. A imagem mais difundida que se tem dela é a de uma senhora de cabelos desgrenhados, vestida de longa e larga roupa negra, com capuz cobrindo seu rosto descarnado, carregando em uma das mãos uma ceifa, aguardando pacientemente o exato momento de executar sua colheita.

27/03/2012

Um muro no meio do caminho

Todas as pessoas têm dificuldades. É praticamente impossível passar por aqui sem algum desencanto, alguma dor, algum sofrimento. E isto não é uma constatação pessimista. É fato. Em menor ou maior grau, com maior ou menor intensidade, todos os humanos passam por problemas ao longo do tempo. A perda de alguém, uma decepção aqui ou acolá, frustrações das mais diversas ordens sempre marcam nossas existências. Ainda bem que, mesmo diante de tudo isso, ainda sobra tempo para termos nossas satisfações e prazeres.    
Há, diante das dificuldades, uma infinidade de caminhos. Há os que não solucionam o caso. Sucumbem. Vivem os seus dias acossados pelos problemas insolúveis que os seguem ininterruptamente. Outros se dedicam a eliminar os entraves. E lutam dias e dias criando estratégias para vencê-los. Quando cansam, e o cansaço faz parte da luta renhida, dão um tempo e depois voltam à peleja.  Há, ainda, aqueles que transformam os obstáculos em catapultas que os impulsionam a locais nunca explorados. Transformam a dor,  socializam o sofrimento não como um pesado lamento, mas sim como um peça de arte.

23/03/2012

O fim do mundo

Nostradamus
Não é só em São Francisco de Paula que há temor pelo fim do mundo. Em todo o planeta pipocam os partidários de que a Terra chegou a 2012 e daí não passará. Aliás, esta crença é muito antiga. Conta-se que os europeus sentiam-se na ponta da espada. A espada descia mais sobre suas cabeças quanto mais se aproximava do ano 1000. A paranoia era tanta que nenhuma obra era iniciada, os governantes relaxaram, as pessoas passaram a aguardar o fim dos tempos.
E o tempo chegou. E, "milagre, supremo milagre!" o sol continuou a brilhar cada vez mais forte. A neve continuava a cair onde devia. E a vidinha continuou a de sempre. Os miseráveis, que se consideravam livres das dores e dos sofrimentos, continuaram carregando seus fardos. E os poderosos e exploradores continuaram em dia com a sua fúria.
Porém, os arautos do desastre que não houve foram convocados a darem suas explicações. A mais óbvia delas, alguém, desavisadamente, havia errado nos cálculos. Como naqueles tempos não havia estagiários para levar a culpa, então debitaram na conta de Júlio César e de Augusto César, imperadores romanos que reformaram o calendário incluindo dois meses (julho e agosto), a imprecisão na data do fim dos tempos.