17/01/2011

Em busca da água perfeita

Já faz tempo. A voz estridente de Belchior anunciava para todo o país: “Eu sou apenas um cantor latinoamericano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior...”. Tínhamos 10 anos. Apesar de morar no litoral, mar não conhecíamos. Em nossa vidinha, sem orçamento, poucas emoções sobravam. O calor era sufocante como este de agora. Chuveiro, nem pensar. Os banhos eram em bacias, com água do poço comunitário. A água servida em casa era retirada em baldes, que deixavam um gosto inconfundível de metal. Na falta de um, uma lata velha lata de tinta quebrava o galho.
A temperatura era alta. As rádios não se preocupavam tanto com isso. Trinta e cinco, trinta e sete, sei lá. Para nós pareciam cinquenta graus. O suor corria pelo rosto de cada menino. Um pequeno açude, na verdade um bebedouro para os animais, era o nosso grande oceano. Primeiro jogávamos o caniço. Pequenos carás, traíras e até mesmo uma imprevidente tartaruga vez por outra eram fisgados pelo pequeno anzol. Cada puxão na linha era uma festa. Um calorão passava por todo o pequeno corpo, aumentando ainda mais a temperatura.  Parecia que o bicho era enorme. Na maioria das vezes não passava  de um minúsculo peixe.
Depois da pesca, quando todas as iscas haviam sido roubadas pelos lambaris, era a grande hora. Meia dúzia de peixinhos colocados numa fieira de barbante, esperavam na margem. Por vezes, os calçõezinhos puídos eram prudentemente colocados em algum arbusto. A água barrenta recebia os encalorados pescadores.
Saltos, mergulhos, bicos, barrigadas. Enfim, o frescor da água perfeita. Luta intensa era retirar as sanguissugas - que conhecíamos como chamichungas - e o bigode de barro que se formava sobre a boca. Antes de recolocar as roupas, uma corrida para secar o corpo.
A Lagoa do Porto, com seu trapiche, remanescente dos tempos da navegação, conhecemos anos depois. Era uma lagoa limpa, com prainha de areia branca e tudo. Já naquele tempo falavam que recebia esgoto do hospital. Qualquer desconforto e já imaginávamos a picada de uma enorme agulha transpassando nosso pé. Os meninos que mais aproveitavam eram os do Porto. Tinham uma grande intimidade com o lugar. Pareciam peixes naquelas águas brancas. Jogavam-se do trapiche e nadavam com uma alegria comovedora.
A Lagoa do Peixoto conhecemos bem depois. Já adolescentes, saíamos em turma, muitos de nós fugidos dos pais, em direção da praiana do Peixoto. Percorríamos alguns quilômetros pelo prazer de encontrar uma boa água para banho. Às vezes saíamos pela manhã, ficávamos até à tarde, sem comida, sem dinheiro. O grande transtorno era a volta. O caminho mais próximo era o da Banheira, quando tínhamos que atravessar pela frente do cemitério do Passo da Cruz. Passávamos de um tirão só. Nem para trás se olhava.Tudo por medo de algum fantasma, alguma alma penada que pudesse emergir das profundezas do campo santo, naquele fim de tarde.
Cansados, chegávamos em casa. Um chinelo, uma reprimenda ou mesmo um compreensivo café com algum bolo frito nos esperava. As histórias variavam de família para família. Um amigo meu era sempre esperado no portão pela sua mãe. Dizia que levava algumas chineladas e tinha que prometer que jamais voltaria para a lagoa. Pedia mesmo que não o convidássemos na próxima vez. Porém, na outra semana, diante do movimento da turma, lá estava ele pronto para mais uma aventura.
Fico feliz em ver que a Lagoa do Marcelino, que conhecemos como Lagoa do Porto, esteja sendo recuperada. É bom para a memória da cidade, que já a havia descartado. Logo ela que já foi o oceano para muito meninos, que sonhavam com a água perfeita.

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